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domingo, 19 de setembro de 2010

Cultuar, Oferecer e Amar



fonte: Redeafro.ning.com



Cultuar, oferecer e amar.

Esta semana participei de uma mesa redonda com alunos de um curso de Pós Graduação em Ensino Religioso, que teve as participações de um pastor presbiteriano, um bispo católico, um representante do budismo e eu, como sacerdote do candomblé, além do mediador, um Doutor Professor da Universidade de Brasília, que por sinal é um dos baluartes defensor de um estudo e ensino da cultura religiosa e das religiões, sempre sob uma perspectiva de igualdade e respeito pelas diferenças e semelhanças, sem emissão de juízo e de valoração entre uma e outra.

Após as falas de todos nós que fazíamos parte da mesa, foi aberto para plenária se manifestar, perguntar, e relatar experiência de sucesso no ensino religioso.

A primeira pergunta foi para mim, como sacerdote do candomblé, e trouxe o questionamento preferido por aqueles que não conhecem nossa religião nem as bases teológicas e suas cosmogonias, que é o “sacrifício” de animais.

Explicitei que na nossa concepção toda a vida é originária de Nzambi/Olorum – Deus, fonte única de todas as coisas e consciência universal manifestada nas mais diversas formas. Que todo o nosso culto gira em torno do alimento, e que o princípio, é a segurança alimentar, ou seja, enquanto oferecemos uma forma de vida animal no altar divino, fazemos isto com respeito, orações, justificações e agradecimentos tanto ao Autor da vida – Deus, como à própria forma de vida animal ali imolada. Nesta concepção a vida volta à sua fonte e o corpo material serve de alimento para a comunidade, garantido assim, tanto o culto sagrado, como a convivência e perpetuação da comunidade.

Após as explicações o bispo católico pediu a palavra e leu uma parte das escrituras sagradas cristãs, que relata que ao ser apresentado no templo, Jesus passara pelo ritual onde um casal de pombos fora sacrificado. Desenvolve o discurso no sentido de a Bíblia traz toda uma ritualística de imolação de animais e que Jesus, havia se oferecido espontaneamente para ser o sacrifício perfeito e que isso teria abolido a oferenda animal. Acrescentou que cada pessoa está num estágio, sugerindo que quem se encontrava neste estágio religioso de oferecer os animais ritualisticamente, ou comesse carne, estaria em um estágio inferior. Ou seja, fez uma valoração teológica de superioridade de uma religião diante de outras.

Pedi de novo a palavra e falei que estávamos ali nos colocando numa perspectiva de formar opiniões de educadores que atuariam no ensino religioso, então o princípio básico era a não afirmação de uma ou de outra tradição, em detrimento de outras, mas em defesa da diversidade cultural e religiosa e a garantia de que todos fossem realmente iguais, independente da fé que professassem.

Na questão teológica em discussão acrescentei que só se pode fazer valoração emitindo juízo de superioridade ou inferioridade ( se é que se pode fazer isto nas questões religiosas, pois o âmbito da fé é muito pessoal) em sistemas teológicos semelhantes ou que tenham a mesma origem. Essa valoração foi feita, por exemplo, pelos sucessores da mensagem cristã após a morte do fundador do cristianismo, quando o apóstolo Paulo fala que “quem não come carne não discrimine quem come”. Mas em sistemas teológicos distintos isso não era permitido e era até mesmo inadmissível, pois o candomblé, por exemplo, encontra-se no bloco de religiões classificadas como religiões naturais e ancestrais, e que não tem um dos princípios básicos do cristianismo, que é uma religião messiânica de salvação, que implica, automaticamente na admissão da condenação eterna (a idéia de salvação só se justifica quando se admite uma condenação).

Na concepção cosmogônica e teológica do candomblé não se visualiza esta figura de salvação ou condenação eterna, por isso não temos um salvador. Concebemos Deus como a consciência suprema do Uno, que se manifesta no verso (Universo), através das criaturas (todas elas), e através de divindades (consciências divinas). Ou seja, as divindades, nesta concepção, não são Deuses em um sistema politeísta ou monoteísta disfarçados (nada contra os sistemas religiosos politeístas ou monoteístas), mas são manifestações da consciência divina. Se a guerra bate em nossa porta, Deus é guerreiro para nos defender e restabelecer a paz, embora no que depender de nós, temos paz entre todos; se precisamos de carinho e amor, Deus se torna mãe carinhosa; se precisamos de encanto Deus é a mulher faceira e encantadora ou o homem irresistível; e se precisamos de alimentos, Deus é o caçador que nos ensina a caçar, a cultivar a terra e plantar e colher os grãos, e a domesticar os animais para nosso alimento. Mas de tudo isso, antes de nos servimos, devemos oferecer o melhor de tudo a Deus. Não que Ele precise, mas nós precisamos sempre nos lembrar que dependemos Dele e de suas Manifestações (Nkisi/Orixá/Vodum/Encantados e até ancestrais) e isso nos eleva espiritualmente para mais próximo da sua consciência e dos nossos ancestrais e divindades. Falei que o termo sacrifício não é o mais apropriado, nosso conceito é de oferenda mesmo, mas temos a limitação das palavras. Oferecemos a vida animal, vegetal e mineral e que tudo, até mesmo uma flor colocada em um altar é, de certo modo, um sacrifício. Uma fruta, uma folha colhida, uma pedra retirada do seu local natural, etc., tudo é uma forma de se sacrificar aquela existência para ser oferecida para a divindade.

A vida animal oferecida é vista como um ser que nasceu naquele caminho e com aquele destino, para “perder” a existência (a vida nunca morre, embora o vivo pereça), em um culto sagrado. Assim concebemos um mundo melhor e uma evolução espiritual para o animal que passou deste mundo para as paragens espirituais, no culto de louvor a Deus.

Não podemos esquecer que em alguns casos o animal é ligado à imagem da própria divindade e comê-lo é também uma forma de se apropriar e se unir a Deus, já que Ele está em mim como animal humano, nas outras formas de animal, no vegetal, no mineral e em todas as coisas.

Por outro lado vemos que este argumento sobre o culto com animais se justifica nas sociedades carnívoras como a nossa. É mais sagrado e faz mais sentido para nós comermos e oferecermos ao povo a carne que foi sacralizada e respeitada e justificada diante de Deus, do que comprar no supermercado a carne que nem sabemos como aquele irmão animal foi morto (até porque não oferecemos animais doentes, já os que compramos, nem sempre tem esta garantia).
Mas não podemos nos esquecer do desafio que bate em nossa porta: o número de pessoas vegetarianas cresce a cada dia. Por vários motivos. Seja por achar que comer carne é um desrespeito com a vida animal, seja porque entender que produzir carne consome muito dos recursos naturais do planeta, como água e florestas, além de produzir muito gás carbônico (Co2), ou por costume ou modismo, ou até por não gostar do sabor da carne. Seja qual for o motivo, nossas casas já são freqüentadas sim por pessoas vegetarianas. E ai, como justificar somente pela segurança alimentar o sacrifício de animal?

Porque se somos carnívoros, faz todo o sentido oferecermos a Deus a vida do animal que vai nos servir de alimento, vai voltar para Deus na forma de vida, mas deixar o seu corpo como comida para muita gente. Mas e se somos vegetarianos?

As manifestações divinas só se individualizam (manifestam) diante dos ritos com oferendas animais? Um Orixá/Nkisi/Vodum ou encantado nunca poderiam ser “feitos” na cabeça de um filho se não tivermos a menga/ejè (sangue) animal? Se o ritual foi todo completo, mas faltou a menga/ejè, a iniciação não pode ser considerada legítima?
Veja que a discussão agora não é comparativa pela superioridade desta ou daquela religião, só porque uma sacrifica e outra não. Não é a oferenda de animais que nos coloca na berlinda e no julgamento pejorativo da sociedade de cultura européia/cristã. É uma discussão teológica que precisamos enfrentar.

Claro que sabemos que quase a totalidade dos que nos questionam sobre este assunto, são carnívoros, o que, em tese, parece não haver sentido para o espanto e estranheza. Sabemos que este questionamento está mais ligado ao preconceito arraigado nas questões étnicas-raciais e históricas, porque praticamos uma religião que nos liga a Deus de maneira pura, sem promessas de condenação ou salvação, mas que é originária da mãe áfrica e trazida por nossos antepassados escravizados. Ninguém pratica o candomblé por medo de não ser salvo, mas para realizar a consciência divina em si mesmo e se realizar espiritualmente de maneira plena e bela. Mas não podemos esquecer que praticamos uma religião negra, no sentido étnico da palavra (como deveria ser sempre. A palavra negra, nunca deveria ser ligada a algo ruim ou negativo). Somos filhos espirituais da mãe África.

Estamos agora discutindo uma questão dentro das nossas bases teológicas, sem comparar com outras religiões ou buscar justificativas em outros povos que também oferecem animais aos seus Deuses, para endossar as nossas práticas. Não é porque os Israelitas tinham um culto a Jeová baseados na imolação e holocaustos (sacrifício de animais e queima das partes rituais no altar), ou porque os Cristãos baseiam sua fé num sacrifício humano (mesmo que voluntário, mas que teve valor para Deus, na concepção cristã), ou porque os nossos irmãos Islâmicos sacrificam cordeiros para Alà, ou ainda porque algumas tradições hindus também sacrificam, que justificaria por si só também oferecermos a vida animal a Deus enquanto nos alimentamos da carne como comunhão entre Deus (e suas manifestações), com os humanos, com os outros níveis de via animal e com os ancestrais.

Estas podem indicar origens comuns das tradições religiosas. Mas não nos isenta de termos que pensar teologicamente nossa fé.

E vai chegar a hora que teremos que encarar esta discussão em nossas hostes, porque, independente do motivo, cada vez mais a sociedade humana vai se tornando vegetariana. Então quem é vegetariano não pode ser iniciado no candomblé? E os ritos com oferendas animal, tanto liturgicamente, como literalmente, quando comemos a carne sagrada junto com as manifestações divinas e com a comunidade? A pessoa para se chegar a Deus através da nossa religião terá que violar um princípio pessoal que para ela não se justifica?

É um dilema teológico.

Claro que não estou aqui entrando em questões de tradições e nem estou sugerindo nada. Estou fazendo uma constatação e convocando a todos para uma reflexão teológica.

As reformas religiosas acontecem em todas as grandes tradições. O que não significa que o que vem depois é melhor do que a tradição sucedida. No Brasil temos um caso que muito se aproxima, que é a Umbanda, que em muitas casas é praticada como uma reforma e atualização dos cultos africanos, claro que com as influencias inevitáveis e muitas vezes saudáveis espiritualmente e outras nem tanto, de outras tradições religiosas. A Umbanda (quase a totalidade das casas) não pratica oferenda animal, o que não significa, por si só, superioridade. Embora nem sempre defenda o vegetarianismo como modo de vida.

O candomblé, também, já pode ser encarado como uma reforma religiosa, que, embora forçada, aconteceu como forma de resistência, pois, com toda a sua diversidade étnica, cultual, lingüística e religiosa, já é uma (re)construção dos cultos primários praticados na diversidade do continente africano. Esta reforma não significa, como no caso da Umbanda, que os crentes do candomblé são melhores, mais evoluídos ou mais próximos de Deus.

Embora hoje estejamos em uma situação privilegiada, pois podemos ter contato com vários cultos de origem africana, como também com várias outras concepções religiosas presentes em nossa sociedade. Com isto, influenciamos e somos influenciados.

Voltando a questão da carne, é importante frisar que o que é vegetariano, por si só, ou só por isso, não é superior ao carnívoro, ou o que pratica uma religião, seja de salvação, seja natural, seja sapiencial, ou as que se permitem transitar por estes vários conceitos, seja superior ao outro, pelo simples fato de oferecer ou não vida animal

A discussão aqui é outra. É uma questão de sermos legalistas. Como, por exemplo, o cristão quando diz que só Jesus é o filho e manifestação de Deus e com isto exclui todas as outras manifestações de Deus e todas as outras possibilidades, só porque é assim que ele lê nos livros sagrados que chegaram até ele.
Assim também somos legalistas quando dizemos que quem não passou por isso ou aquilo não pode manifestar a divindade.

Claro que quando falamos em religião institucionalizada, para ser autêntico dentro de uma tradição é necessário que passemos pelos ritos e liturgias daquela tradição. Isto nos dá autoridade dentro de uma determinada linhagem religiosa, mas não nos faz donos de Deus e de suas manifestações (divindades), para estabelecermos quem pode ou não manifestá-los.

Também se sugere que quem não pratica os ritos de uma determinada tradição, não pode ser reconhecida como tal. De certo modo funda-se um novo jeito, uma nova família, uma nova religião, etc. Isto é razoável. Para assegurar que sou Tumba Junsara preciso manter os ritos fiéis aos recebidos pelos meus mais velhos pertencentes a esta família. Posso até ter costumes diferentes, sotaques, ritmos, mas a base teológica tem que permanecer para que seja considerada autêntica no sentido institucional. Senão fundo uma outra família.

Sabemos dos mitos e lendas (que neste contexto sagrado deve ser encarado com verdade universal), onde as divindades ensinam aos humanos a oferecer animais no culto, para que assim permanecessem vivas entre nós, mas nem mesmos os mitos e lendas podem nos limitar literalmente. Ao pé da letra nem sempre conseguimos ver a verdade velada e ensinada nos mitos.

Temos que ir além.

Deixar cair o véu e usufruir de todas as possibilidades de plenitude que Deus e suas manifestações (Nzambi Mpungu/Olofim/Olorum e Nkisi/Mukisi, Orixá e Vodun e Encantados) podem nos proporcionar.

Mais uma vez relembro que não é o simples fato de oferecemos animais nos nossos cultos que vai nos fazer autênticos ou verdadeiros ou legítimos diante de Deus. Embora às vezes nos faça diante dos humanos. Mas o que nos legitima é nossa experiência, nossa fé, nossa transcendência e nosso respeito à diversidade das manifestações divinas.

Também não é o simples fato de sermos vegetarianos ou praticarmos uma religião que não tem culto com oferendas animais que nos fará superiores ou melhores do que nossos irmãos e irmãs humanas. A folha, a semente, o fruto, os grãos, também não são vivos?

Só a vida alimenta o vivo. Não tem como fugir dessa realidade da existência.

O que passa disso é convencimento interno que para cada um justifica.
É engano avocar para si a posse do sagrado, baseado em qualquer que seja o motivo externo (incluindo-se aqui os ritos e as liturgias) nos fazendo donos de Deus, e consequentemente O limitarmos ao nome pelo qual é conhecido e cultuado por nós.

Para nós do candomblé todos os nomes pelos quais Deus É conhecido são sagrados e não podem ser vilipendiados. Porque Deus está além de qualquer nome pelo qual possa ter se revelado aos ancestrais da humanidade e a nós.

Por isso reafirmo que nossa religião é autêntica, verdadeira e legítima como qualquer outra, independente dos ritos e liturgias que desenvolvemos, já que todos eles se justificam teologicamente e internamente nos fiéis.

Que o fato de oferecermos menga/èjè não significa crueldade com nossos irmãos que nasceram em outras classes animais, nem, tão pouco, desrespeito à vida (já que concebemos que a vida é eterna, só a forma que é passageira), nem nos faz inferiores a outras religiões ou tradições que não mantém o mesmo rito, embora esteja na base do culto dos seus ancestrais.

Somo próximos e realizados em Deus, independente da religião que temos, quando manifestamos amor, caridade, elevação espiritual e mantemos o equilíbrio do nosso planeta na preservação dos ecossistemas e respeitando a todas as formas de vida (oferecer vida animal neste contexto não significa desrespeito).

Mas isso não nos exclui de pensarmos e repensarmos nossos mitos, ritos, tradições e cultos, mesmo que a prática não seja alterada, com certeza o sentido e o entendimento serão muito mais apurados e muito mais espiritualizados. Seremos e faremos gerações melhores como seres humanos, divinos e divinizados dentro da nossa religião.

Neste contexto, até mesmo um vegetariano pode sim ser iniciado no candomblé, passar pelos ritos sacralizadores com a menga/èjè, sem se sentir violado ou violando seu princípio pessoal, pois entendeu que a vida voltou a fluir da fonte, embora a forma tenha se doado para que ele se tornasse um membro legítimo de uma religião legítima que guarda a memória dos seus ancestrais e onde toda a vida é respeitada, por isso todas as formas de vida são à Deus oferecidas e se realizam juntamente com ele/ela naquele ato sagrado e de profundo amor e respeito.

Mba kukunda ngana Nzambi Mpungu!!!!! (Louvado seja Deus Todo Poderoso).

Tatá Ngunz’tala
Sacerdote do Candomblé de Angola (Ndanji Tumba Junsara).
Teólogo e Pedagogo.
francgunzo@gmail.com
61.8124.0946

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